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Trabalhadores cambojanos e chineses despejam lixo do lado de fora de um canteiro de obras em Sihanoukville, Camboja, em 16 de fevereiro de 2020. Paula Bronstein (Paula Bronstein/Getty Images )

A catástrofe do endividamento no Sul Global 

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Tradução
Laira Vieira

O Sul Global está enfrentando a pior crise de endividamento em décadas. A menos que haja alívio imediato, qualquer progresso feito no combate à extrema pobreza corre o risco de ser eliminado.

Diante dos aumentos acentuados na pobreza observados nos países ricos desde a pandemia e a crise inflacionária que se seguiu, a crise do endividamento que atualmente aflige os países pobres não conseguiu romper a consciência pública no Norte Global. 

Na verdade, a crise do endividamento do Sul Global tem surgido nos bastidores há quase dois anos, só aparecendo nas manchetes quando uma nação de renda média como o Líbano ou a Argentina anuncia que é incapaz de pagar suas dívidas. 

As dinâmicas do sistema financeiro internacional que sustentam esta crise são complicadas, valendo a pena entrar em detalhes.

Quando a pandemia surgiu, os fluxos comerciais que unem partes díspares da economia global pararam. Isso significou que a renda de muitas nações secou, especialmente as mais fortemente dependentes das exportações. 

Juntamente com essa desaceleração do comércio, houve uma forte reversão dos fluxos de investimento, também conhecida como fuga de capitais. No primeiro semestre de 2020, houve uma fuga de ativos considerados de risco  (como a dívida governamental de países pobres), para ativos considerados seguros (como a dívida governamental de países ricos).

A perda de receita do comércio combinada com a perda repentina de investimento internacional derrubou as moedas de muitos estados do Sul Global. Isso, por sua vez, tornou a importação de bens  (incluindo necessidades básicas como alimentos e combustível) muito mais cara, restringindo a produção e exacerbando a pobreza. 

Claro, uma moeda menos valorizada também torna as exportações de um país mais competitivas internacionalmente. Mesmo em tempos bons, esse segundo efeito tende a ficar atrás do primeiro. Mas durante a pandemia, quando o comércio efetivamente congelou, era quase inexistente.

Tal situação já seria ruim o suficiente para as pessoas que vivem nessas nações, não fosse o fato que também impedia a capacidade de seus governos de pagar suas dívidas.

Câmbio

O problema para os Estados do Sul Global é que a maioria de sua dívida é geralmente em dólares, ou alguma outra moeda estrangeira. Como o chefe da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento lembrou ao mundo, no final do ano passado, entre 70% e 85% da dívida dos países em desenvolvimento é cobrada em moeda estrangeira.

Em um país como os EUA ou o Reino Unido, o governo emite certificado de dívidas na sua moeda nacional (o dólar ou a libra esterlina). Quando o valor da moeda diminui em relação a outra moeda, o valor relativo da dívida do governo também diminui. 

Por exemplo, digamos que o valor da libra esterlina caísse 10% em relação ao valor do dólar. Um investidor dos EUA que detém dívida do governo do Reino Unido receberia pagamentos de juros sobre essa dívida em libras esterlinas e os converteria em dólares.

Assim, quando o valor da libra esterlina caiu, em comparação ao valor do dólar, o mesmo aconteceu com o valor em dólares dos pagamentos de juros que eles receberam. Se o investidor vendesse o ativo, descobriria que seu valor em dólar também havia caído devido ao valor reduzido dos pagamentos de juros. 

Em outras palavras, o governo do Reino Unido não é responsável pelas perdas dos investidores, o investidor sim. Este é o grande privilégio de poder fazer empréstimos na própria moeda. 

Também explica o risco que os investidores correm quando investem em ativos em moeda estrangeira: O valor da moeda pode cair em relação a outras moedas. Isso pode ser visto como parte do risco normal de fazer negócios. O investimento, afinal, tem tudo a ver com o gerenciamento da incerteza.

Mas ganhar muito dinheiro investindo significa reduzir os riscos associados à incerteza. Esta é uma grande parte da razão pela qual os investidores fizeram muito esforço ao longo da história tentando atrelar moedas a preços “reais”, como o ouro. 

É também por isso que eles preferem emprestar aos países pobres quando a dívida é denominada em dólares. Por um lado, isso significa que os países pobres podem ter acesso a mais investimento internacional do que de outra forma. Por outro lado, significa que assim que uma crise econômica chega, ela rapidamente se multiplica em uma crise de endividamento.

Se o valor do Kwacha zambiano cair 10% em relação ao dólar, mas a dívida da Zâmbia for denominada em dólares, os juros dessa dívida terão de ser pagos em dólares. Isso significa que o governo tem de se desfazer de mais Kwachas para ter acesso aos dólares necessários para a manutenção da dívida. 

No entanto, a desvalorização muitas vezes é desencadeada precisamente pelo fato de que a quantidade de dólares que entra na economia caiu. Talvez tenha havido uma queda nas receitas do comércio. Ou talvez um choque econômico global tenha reduzido os fluxos de capital. No caso da Covid, os dois aconteceram ao mesmo tempo.

Os governos dos Estados pobres foram forçados a encontrar mais dólares para pagar suas dívidas internacionais, ao mesmo tempo em que a maior parte dos dólares do mundo voltava para o porto seguro dos Estados Unidos. Não é de surpreender que isso tenha resultado em uma profunda crise de endividamento, sem dúvida mais profunda do que aquela que afligiu o Sul Global na década de 1980. 

A resposta bastante fraca do mundo foi anunciar uma moratória no pagamento de dívidas enquanto o “Grande Lockdown” continuasse. E assim os pagamentos de juros da dívida do governo para a maioria dos países seriam congelados até que a pandemia terminasse. 

Mas essa “solução” falhou em lidar com a questão subjacente de que o valor da dívida pendente do mundo pobre havia aumentado acentuadamente.

Isso poderia não ter sido um problema tão grande se a economia mundial tivesse revertido rapidamente ao status quo pré-Covid, com as moedas dos países pobres se recuperando rapidamente. Em vez disso, os preços rapidamente começaram a disparar e o custo de vida aumentou depois do fim do lockdown. 

Por um lado, alguns exportadores de petróleo e de commodities lucraram com o aumento dos preços. Grandes exportadores com setores petrolíferos nacionalizados, ou altos impostos sobre as exportações de commodities, muitas vezes viram suas receitas aumentarem à medida que os preços subiam. 

Mas aqueles Estados que não foram capazes de gerar muita receita com o aumento dos preços das commodities, seja porque não eram exportadores significativos ou porque suas economias eram dominadas por empresas extrativas estrangeiras, sofreram profundamente.

E quando as taxas de juros começaram a subir nos países ricos, à medida que a pressão inflacionária se aprofundou, os fluxos de capital desses países aceleraram, à medida que os investidores buscavam os retornos mais altos disponíveis no Norte Global. 

Esses Estados experimentaram todas as desvantagens do aumento dos preços das commodities e poucos benefícios. O caos econômico gerado também restringiu os fluxos comerciais e de investimento, exacerbando o impacto da pandemia em suas moedas e agravando a crise de endividamento. 

Para piorar a situação, muitos desses Estados estavam à beira do endividamento antes do início da pandemia. De acordo com a Jubilee Debt Campaign, pelo menos 34 países estavam em inadimplência ou em alto risco no início de 2020, em comparação com apenas 17 em 2013.

Endividamento

Alguns dos Estados mais pobres do mundo estão agora enfrentando uma crise de endividamento de proporções gigantescas. O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas avaliou que 54 economias em desenvolvimento estavam em situação de endividamento. Pelo menos metade de todas as pessoas que vivem na pobreza vivem nesses 54 países. 

E a situação só tende a piorar. Os países pobres terão dificuldades para rolar suas dívidas se não conseguirem fazer os pagamentos existentes, muito menos acessar novos empréstimos para investimento. As perspectivas econômicas dessas nações continuarão a diminuir como resultado, enquanto suas crises de endividamento se aprofundam.

Para piorar a situação, muitos desses Estados estão na linha de frente na batalha contra o colapso climático. Eles estão enfrentando o aumento de eventos climáticos extremos, desertificação, aumento do nível do mar, declínio da produtividade agrícola e muitos outros riscos, graças à sobreposição de crises ecológicas causadas em grande parte pelos países ricos. 

Esses Estados precisarão acessar quantias significativas de investimento apenas para mitigar o impacto do colapso climático em suas economias, muito menos investir na descarbonização. No entanto, eles não conseguirão acessar esse investimento se não puderem pagar suas dívidas existentes.

A última vez que o mundo enfrentou uma situação semelhante foi na década de 1980, quando aumentos nas taxas de juros nos EUA desencadearam a fuga de capitais do Sul Global. Naquela época, como agora, grande parte da dívida dos países pobres era expressa em dólares.

Mas hoje, uma parcela significativa da dívida internacional do mundo pobre é devida ao Estado chinês. A pressão está aumentando sobre a China para chegar a acordos com os países devedores para amortizar parte da dívida. 

No entanto, o Partido Comunista Chinês tem pouco incentivo para fazê-lo se souber que qualquer alívio da dívida que fornecer simplesmente fluirá diretamente para as mãos de ricos investidores privados nos países ricos, que geralmente são as últimas partes a concordar com qualquer processo de reestruturação.

No passado, alguns investidores privados atrasaram deliberadamente os processos de reestruturação da dívida, na esperança de forçar o governo em questão a atrasar o pagamento da dívida, e depois processar o estado por não pagar suas dívidas. 

Esta é precisamente a situação que se abateu sobre a Zâmbia na sequência da crise financeira, quando um fundo abutre manteve algumas das pessoas mais pobres do mundo como reféns para proteger seus ricos investidores.

Como a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento tem frequentemente solicitado, o que é necessário é um acordo internacional sobre a reestruturação da dívida. Tal acordo precisa incluir todos os credores e devedores e forçar quaisquer partes rebeldes a cumprir um acordo feito por outros.

A alternativa é que a “comunidade internacional” fique de braços cruzados enquanto o pouco progresso feito no combate à pobreza na última década é erradicado nos próximos anos. Tal escolha mostraria, de uma vez por todas, a hipocrisia do aparente compromisso do mundo com o desenvolvimento sustentável.

Sobre os autores

escreve na Tribune Magazin e é apresentadora do podcast semanal A World to Win.

Cierre

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Published in Análise, Austeridade, Capital and Economia

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